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sábado, 6 de fevereiro de 2010
OS CINCO SENTIDOS

Os cinco sentidos
São belas - bem o sei, essas estrelas
Mil cores - divinais têm essas flores;
Mas eu não tenho amor, olho para elas;
Em toda a natureza
Não vejo outra beleza
Senão a ti - a ti!
Divina - ai! sim, será a voz que afina
Saudosa - na ramagem densa, umbrosa.
Será; mas eu do rouxinol que trina
Não oiço a melodia,
Nem sinto outra harmonia
Senão a ti - a ti!
Respira - naura que entre as flores gira,
Celeste - incenso de perfume agreste.
Sei... não sinto: minha alma não aspira,
Não percebe, não toma
Senão o doce aroma
Que vem de ti - de ti!
Formosos - são os pomos saborosos,
É um mimo - de néctar o racimo:
E eu tenho fome e sede... sequiosos,
Famintos meus desejos
Estão... mas é de beijos,
E só de ti - de ti!
Macia - deve a relva luzidia
Do leito - se por certo em que me deito;
Mas quem, ao pé de ti, quem poderia
Sentir outras carícias,
Tocar noutras delícias
Senão em ti - em ti!
A ti! ai, a ti só os meus sentidos
Todos num confundidos,
Sentem, ouvem, respiram;
Em ti, por ti deliram.
Em ti a minha sorte,
A minha vida em ti;
E quando venha a morte,
Será morrer por ti.
Almeida Garrett
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010
CREPÚSCULO

Começa a entardecer. Amor, é tarde...
Descansa no meu peito a tua fonte,
e vê o Sol baixando no horizonte,
em chamas de ouro, como brilha e arde.
Agora, resignados, sem alarde,
vamos descendo a escosta deste monte.
Já não tenho mais versos que te conte,
e nem um verso eterno em que te guarde!...
Calam-se os passarinhos no arvoredo.
- É a noite que vem. Não tenhas medo.
Acabaram-se os cantos festivais.
Silencio. Solidão. Ninguém se afoite...
Anoitecer que importa, se é de noite
que os beijos de quem ama sabem mais.
Espínola de Mendonça
OUVE MEU ANJO...

Ouve, meu anjo:
Se eu beijasse a tua pele?
Se eu beijasse a tua boca
Onde a saliva é mel?
Tentou, severo, afastar-se
Num sorriso desdenhoso;
Mas aí!,
A carne do assassino
É como a do virtuoso.
Numa atitude elegante,
Misterioso, gentil,
Deu-me o seu corpo doirado
Que eu beijei quase febril.
Na vidraça da janela,
A chuva, leve, tinia...
Ele apertou-me cerrando
Os olhos para sonhar -
E eu lentamente morria
Como um perfume no ar!
Antônio Botto
SE DUVIDAS QUE TEU CORPO

Se duvidas que teu corpo
Possa estremecer comigo –
E sentir
O mesmo amplexo carnal,
– desnuda-o inteiramente,
Deixa-o cair nos meus braços,
E não me fales,
Não digas seja o que for,
Porque o silêncio das almas
Dá mais liberdade
às coisas do amor.
Se o que vês no meu olhar
Ainda é pouco
Para te dar a certeza
Deste desejo sentido,
Pede-me a vida,
Leva-me tudo que eu tenha –
Se tanto for necessário
Para ser compreendido.
Antônio Botto
DUAS EXISTÊNCIAS

Numa casa em que faltava
A luz o ar e pão
Entrara ela na vida
Tendo ao seu lado um caixão;
Pois no dia em que nascera
Morrera seu pai também!
Vira assim a luz do mundo
Sozinha com sua mãe!
Num rico, claro aposento
Entre veludos e rendas
Onde as mais pequenas fendas
Para não entrar o frio,
Embora fosse no estio
Se tinham calafetado,
Onde tudo era alegria,
Onde tudo era cuidado
Tinha no mundo ele entrado
Em um explêndido dia!
Crescera só rodeada
Pela dor, pela pobreza,
Pela fome, pelo frio,
Pela miséria e tristeza
Crescera ele ao contrário
Entre risos d'alegria
Entre abundância, opulência
E tendo tudo o que queria.
A mãe dele mui doente
Não podia trabalhar:
A linda e pobre Maria
Tinha pois que a sustentar
Para isso noute e dia
Estava sempre a costurar!
Ele não, não trabalhava,
Alegre vida levava,
De cousa alguma cuidava,
Excepto dos seus prazeres.
Gastava dinheiro a rodos
Mas era célebre entre todos
Pelos seus trens e mulheres!
Maria como uma deusa
Era bela era formosa.
Olhos lindos, graciosa
A boca, e as mãos de fada.
Alta não muito, elegante.
A tez do seu semblante
Mimosa mas descorada.
Tinha mui negro o cabelo
E de tal maneira belo
Que qualquer pessoa ao vê-lo
Ficava extasiada!
Também ele era formoso,
O rosto branco e rosado,
O seu lábio por um buço
Louro e fino assombreado.
Era enfim João um moço
Que devia ser amado.
Por grande fatalidade
Encontrara ele um dia
A linda e casta Maria
Numa rua da cidade.
De ver tão grande beleza
Na miséria, na pobreza
Ficara muito espantado.
De Maria o coração
Palpitara ao ver João!...
.........................................
Poe ela ele foi amado!...
Com grande amor inocente.
Amou-a ele também
Porém... criminosamente!
........................................
........................................
Passou-se o tempo e a pomba
Caiu nas garras do abutre!
.......................................
É bem certo que mui zomba
A previdência no mundo
Com um cinismo profundo
Pois em quanto que Maria
Donzela tão desgraçada
Vendo-se ludibriada
Viver mais tempo não queria
E co'a a vida terminava;
Ele, o infante João
Continuava a viver
Rico, alegre e feliz
Numa vida de prazer!...
Mário de Sá-Carneiro
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010
NOTURNO

Noturno
Alguém que me falou de amor
imaginou na noite dos corpos
a solidão a fluidificar-se
nas ancas da mais fecunda borboleta.
Nas noites há apenas o erotismo
das palavras por florir
um corpo à espera de um casulo
num aconchego de crisálida
o sono de beber a boca-fonte
líquida pura
tremer
até à última metamorfose
depois voar não importa para que flor.
João Martim
VIMOS CHEGAR AS ANDORINHAS

Vimos chegar as andorinhas
conjugarem-se as estrelas
impacientarem-se os ventos
Agora
esperemos o verão do teu nascimento
tranqüilos, preguiçosos
Tão inseparáveis as nossas fomes
Tão emaranhadas as nossas veias
Tão indestrutíveis os nossos sonhos
Espera-te um nome
breve como um beijo
e o reino ilimitado
dos meus braços
Virás
como a luz maior
no solstício de junho.
Rosa Lobato de Faria
terça-feira, 2 de fevereiro de 2010
AS MÃOS PRESSENTEM

As mãos pressentem a leveza rubra do lume
repetem gestos semelhantes a corolas de flores
voos de pássaro ferido no marulho da alba
ou ficam assim azuis
queimadas pela secular idade desta luz
encalhada como um barco nos confins do olhar
ergues de novo as cansadas e sábias mãos
tocas o vazio de muitos dias sem desejo e
o amargor húmido das noites e tanta ignorância
tanto ouro sonhado sobre a pele tanta treva
quase nada
Al Berto
IDENTIDADE

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem inseto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
Mia Couto,
in "Raiz de Orvalho e Outros Poemas"
PAISAGEM

Percorro esta paisagem com os olhos
e vejo grandes árvores perfiladas contra o vento,
mas o vento é a luz que esvanece nos meus olhos
as árvores que não vejo como vejo ou imagino.
Nos meus olhos há florestas
ervas que se erguem para ser árvores
no seio interior da paisagem,
esta paisagem que eu percorro com os olhos.
E é esse o caminho liberto a esvoaçar em bandos de aves
que vêm de longe, donde o vento sopra
o ânimo dum milagre feito mágica
de azuis e verdes no cinzento da minha terra.
Vieira Calado
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010
SECRETA VIAGEM

No barco sem ninguém, anónimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada...
Como podem só dois governar um navio?
Melhor é desistir e não fazermos nada!
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa...
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos...
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa...
Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem...
Aonde iremos ter? — Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa... alheio aos meus sentidos.
— Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!
.
David Mourão-Ferreira, in "A Secreta Viagem"
domingo, 31 de janeiro de 2010
PELICANO

Pelicano
Onda que vais morrendo em nova onda,
mar que vais morrendo noutro mar,
assim a minha vida se desprenda e do meu sumo
escorra a vida para as bocas que se finam
de desejar.
Ó dia que vais escoando como os rios
e empalideces rostos e cabelos,
traze a palavra para a incerteza
dos que vagueiam à deriva;
a bandeira amarela se rasgue
e dos farrapos se gere outra cor.
Ó dia correndo e findando,
some-te lá no cimo da fraga
mas deixa que no teu rasto fique o sangue
anunciando a esperança noutro dia.
Sê como a onda que morre para outra começar.
Fernando Namora, in "Mar de Sargaços"
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