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sexta-feira, 30 de julho de 2010

ASTRID CABRAL FÉLIX DE SOUSA



Astrid Cabral Félix de Souza, poetisa e contista, nasceu em Manaus, no dia 25 de setembro de 1936. Realizou seus estudos superiores na Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde concluiu o curso de Letras Neolatinas. Foi professora da Universidade de Brasília e oficial da chancelaria do Ministério das Relações Exteriores. Sua estréia literária aconteceu em 1963, com a publicação de seu único livro de contos: Alameda.É viúva do poeta Afonso Félix de Sousa.

BAINHA ABERTA



Crava em meu corpo essa espada crua.
Quero o ardor e o êxtase da luta
em que me rendo voluntária e nua.
Meu temor é a paz pós-união:
desenlace derrota solidão.


MÃOS



No deserto da insônia
a mão, triste, me acena
nua de anéis e luvas.
Dedos gesto de adeus
anunciam o abandono
da matéria efêmera.
Dos campos do sono
a mesma mão me chama
cintilante de estrelas.
Tento alçar-me da cama
no encalço do convite
mas a carne me amarra.
E enquanto o corpo dura
fico entre a dor da perda
e o desejo do encontro.


NO COLO DO ANJO



Empoleirado
na torre do meu sonho
um anjo resplandece.
Cílios cintilantes
estrelas nos olhos
ele me acena com plumas
e me abraça com asas.
Juntos vagamos
entre rastros de astros
a cavalgar nuvens
por planícies etéreas
até que me sinto serena.
É como se mudo dissera
não temas véus ou névoas
qualquer neblina passa.
Mas eis que então fala:
Não sejas cega, menina.
O olhar de Deus tudo abarca.
Só os homens têm pálpebras.


JOGO DE CASA



Sob telhas
centelhas fagulhas borralho
olhos d'água água na talha

Sob telhas
galhos alhos coalhos
molhos repolhos toalhas

Sob telhas
agulhas retalhos
malhas fitilhos ilhoses

Sob telhas
rodilhas presilhas
palmilhas sapatilhas

Sob telhas
mulheres abelhas
colheres talheres

Sob telhas
parelhas filhos filhas
espelhos ilhas

Sob telhas
armadilhas navalhas
batalhas partilhas mortalhas.



ENSAIANDO PARTIDAS



Cadeiras de balanço mastigavam os soalhos
ensaiando partidas, embalando fundas ânsias
contra bojos de navios trancados a âncoras.
Caolhos os rádios acendiam as mágicas pupilas
de gato e vozes espetrais sem apoio de bocas
e rostos chegavam, de que mundo, de que mapa?
Ventiladores giravam as corolas metálicas
no chão invertido dos tetos criando brisas
que não se aventuravam pelas ruas polidas
de sol nem ousavam soprar a fuga de velas.
Na praça São Sebastião galeras de bronze
destinavam-se a longínquos continentes mas
imóveis não singravam ondas de lusas pedras
deixavam-se estar molhadas tão só de chuvas
proas frustradas de horizontes e azuis.
Que estranha calmaria as conjurara, quilhas
vacinadas contra a vertigem dos ventos?
Ou estariam desde sempre fundeadas nas
invisíveis correntes d’água dos séculos?
Dobravam os sinos abafando os frenéticos
pianos a planger nos salões dos sobrados
mas o que sempre se ouvia, pouco importa
se baixo e rouco, era o gargarejar do rio
a vocação de foz e mar drenando fragmentos
de terra, arrastando de roldão os corações.


BICHO-DE-SETE-CABEÇAS



À medida que envelheço
as sete cabeças do bicho
corto. Enfim o reconheço
íntimo de mim, meu próximo.

À medida que envelheço
conquisto-lhe o segredo.
Vejo a morte iniciação
à viagem pelo avesso.

À medida que envelheço
digo: o bicho é meu amigo.
Não, não há porque maldar
envenenando o sossego.

À medida que envelheço
sinto-me remanescente
num deserto onde tropeço
por entre sombras de ausentes.

À medida que envelheço
aprendo a perder o medo.
Todo bicho fica meigo.
E só botar no colo.


Astrid Cabral Félix de Sousa

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